Afinal de contas, o que é neurociência?
Já aviso que não é um texto curto nem superficial!
O termo neurociência expressa a necessidade de integrar os conhecimentos das diversas áreas da pesquisa e da clínica para compreensão do Sistema nervoso. As neurociências são muitas, no plural, pois precisam derrubar as caixas das disciplinas tradicionais, e são o melhor exemplo da importância da abordagem multidisciplinar.
Como área científica reconhecida, a neurociência tem pouco mais de quatro décadas – é uma criança!
Mas é uma criança com pais e avós bastante robustos – a anatomia, histologia, psicologia, psiquiatria, neurologia, neurofarmacologia, biologia celular e molecular, biofísica, bioquímica e fisiologia.
Só não podemos cair na tentação de destacar algum desses níveis de existência – talvez puxando para sua disciplina preferida – em detrimento das demais. Claro que podemos analisar o sistema nervoso ao nível das células fazendo sinapses químicas em rede, ou podemos focar no nível elétrico das alterações eletrofisiológicas – mas não é apropriado reduzir os fenômenos a apenas uma ou outra explicação - os níveis de existência do sistema nervoso não são “consequência” uns dos outros – eles existem simultaneamente, em paralelo, todos juntos!
Já que as neurociências são muitas, se trata de uma ciência recente e ainda a dividimos em blocos de disciplinas, quem são as especialidades que estão atualmente contribuindo para seu desenvolvimento?
Nos níveis do microfuncionamento, temos a neurociência molecular, que inclui a neuroquímica, biofísica e eletrofisiologia. No nível celular temos a neuro-histologia, neurobiologia celular e neurociência sistêmica – que considera populações de células nervosas em áreas do Sistema nervoso e é dividida em neurofisiologia e neuroanatomia.
A neurociência comportamental se dedica a entender comportamentos produzidos por estruturas neurais e outros fenômenos psicológicos. Aqui surgem especialidades como a psicobiologia ou psicofisiologia.
A neurociência cognitiva – ou neuropsicologia, aborda as capacidades mentais mais complexas – por exemplo a linguagem ou memória.
Todas essas sudivisões tem limites muito estreitos, e uma compreensão ampla deve juntar tudo em um conhecimento multidimensional.
O aspecto multidimensional fica ainda mais evidente quando observamos a chegada de outros profissionais e interesses nos ramos das neurociências.
São eles os engenheiros de computação e software, artistas gráficos, programadores de diversas áreas, publicitários e profissionais de marketing, profissionais de recursos humanos e líderes empresariais, educadores e pedagogos, produtores de conteúdo e palestrantes.
Ainda surge a neurociência social, mediada por antropólogos e cientistas sociais.
Toda essa rede multidisciplinar se interessando e também gerando material de estudo em neurociências mostra o quanto é importante uma divulgação científica de qualidade, ao mesmo tempo que exige uma maturidade científica e senso crítico de quem procura esse conhecimento.
Falar de Avanços interessantes das neurociências hoje e suas potencialidades para o futuro é um tema muito amplo, mas escolhi dois aspectos desses avanços que considero mais impactantes no nosso dia a dia – as neurociências na educação e sociedade e os avanços na medicina.
Na educação, o entendimento de como o cérebro jovem e o cérebro adulto aprendem é o grande norte das discussões, apimentadas também pela evolução dos dispositivos eletrônicos.
O conceito de neuroplasticidade é o que mais se relaciona com o universo da educação, ela é a capacidade do sistema nervoso de se reorganizar e se adaptar às mudanças, os neurônios, vivos e plásticos, podem formar novas conexões e ajustar suas redes em resposta a estímulos do ambiente.
Ou seja, tudo que vivemos, todos os estímulos que experienciamos, mudam nosso cérebro.
Esse é um dos principais mecanismos pelos quais a espécie evoluiu e se adaptou ao longo do tempo, para além do que estava geneticamente predeterminado.
Cada adaptação e mudança do cérebro a partir de um estímulo pode gerar aprendizado.
Aprender é mudar o comportamento a partir de experiências construídas por fatores emocionais, neurológicos e ambientais. Fisiologicamente, aprender corresponde há mecanismos que envolvem novas conexões sinápticas, o crescimento do dendritos, mudanças nas macroproteínas nas membranas neuronais e também variações nos neurotransmissores em áreas sinápticas funcionais.
Processos de aprendizagem são a construção, manutenção e renovação das redes neurais. Sendo que cada mudança nessas estruturas refletem a qualidade da interação com o ambiente e o nível de amadurecimento neuronal.
E falando em amadurecimento, a fase da vida é um fator crucial no estudo da aprendizagem e neuroplasticidade.
O período em que a estrutura está mais suscetível a construções e renovações é a infância. O bebê tem uma quantidade de neurônios muito superior a de um adulto, e todos ávidos para criarem conexões.
"Em nenhuma outra fase da vida as respostas aos estímulos são tão rápidas, amplas e intensas", disse Jack Shonkoff, diretor do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard, nos Estados Unidos
No primeiro ano de idade, a plasticidade cerebral está em seu ápice. Porém, esse período de proliferação de conexões passa e se inicia um processo conhecido como poda neural, onde as ligações pouco utilizadas entre neurônios são desligadas. Nessa fase o número de neurônios é ajustado e aumenta a sinaptogênse (formação de conexões) entre as células que ficam, isso favorece a aprendizagem de conteúdo novo.
Quando chega a adolescência, todo o sistema passa por um refinamento. As sinapses fracas e ineficientes são eliminadas e aumenta a mielinização – que é a camada de mielina nos axônios dos neurônios com a função de acelerar a transmissão de impulsos nervosos. Nessa fase a aprendizagem de conteúdo novo diminui, porém a habilidade de usar e relacionar o que já foi aprendido aumenta.
Diferente do que já se acreditou, a plasticidade não é restrita a infância ou adolescência, o adulto preserva essa habilidade, o cérebro maduro também é maleável e se adapta às circunstâncias! Mas claro que o estímulo é essencial, além de um sistema fisiologicamente saudável. A receita para manter e aproveitar ao máximo sua plasticidade é o empenho cognitivo através de estímulos variados associado a atividade física e alimentação de qualidade. Essa combinação favorece as sinapses em áreas como o hipocampo, facilitando o desempenho cognitivo e a memória.
Quando dizemos que conteúdo é aprendido, essa informação é construída na rede de células em forma de padrões espaço-temporais de ativação, e sua manutenção depende da força relativa de conexão entre as sinapses. Como se fosse uma trilha aberta na mata, que se consolida quanto mais se anda por ela.
O psicólogo canadense Donald Hebb – 1949 – foi quem afirmou que o nível de atividade pode alterar a força de conexão sináptica entre os neurônios, o que ficou conhecido como a Lei de Hebb! Na prática, neurognitivamente, quanto mais ativamos as células de uma rede neural, mais forte ela se torna e será mais fácil ativá-la novamente.
E o melhor é que todo o conjunto de evidências atuais seguem confirmando a lei de hebb. Podemos afirmar com tranquilidade que a aprendizagem leva a mudanças estruturais e reorganização das redes de neurônios.
Eric Kandel, neurocientista que levou o Nobel de Fisiologia em 2000 por descobertas sobre a transmissão de sinais entre neurônios, resume a plasticidade – “A unidade funcional do sistema nervoso é uma imensa rede de conexões sinápticas entre neurônios, além de células gliais, as quais são modificáveis em função da experiência individual, ou seja, do nível de atividade e do tipo de estimulação recebida.”
Tal conhecimento neurofisiológico tem grande impacto prático, não só na aprendizagem e evolução dos métodos educacionais, mas também nos processos psicoterápicos e de reabilitação. Como por exemplo, o desenvolvimento de novas abordagens em casos de crianças com deficiência intelectual, onde a relação entre educação e neuroplasticidade geram técnicas e treinamentos cognitivos capazes de adaptar o currículo para essas crianças.
Todas essas discussões acompanhadas pelos avanços das neurociências promovem um ambiente fértil para trazer estratégias melhores e mais contextualizadas com as tecnologias digitais. Os conhecimentos neurocientíficos são pano de fundo das mudanças nos métodos de sala de aula – do modelo de ensino em massa para um modelo colaborativo e personalizado, neuroética e mediação de problemas sociais.
Nossa mente é muito mais do que um liquidificador de memórias e informações. Lembre dos momentos marcantes da sua vida, em todas habilidades que desenvolveu da infância até agora, das pessoas que gosta e de quando a dor delas vira uma dor sua, das emoções mais fortes que sentiu.
Somos seres sociais, empatia, o altruísmo e a cooperação são fundamentais para nossas vidas. Em nosso cérebro temos áreas específicas que são ativadas quando estamos em socialização. Além de simplesmente ativar áreas, todo nosso sistema mental é formado – desde bebezinho – baseado na socialização. Toda nossa biologia está entrelaçada com a dos outros humanos.
Dentro desse sistema neuronal temos os neurônios-espelho, uma das estruturas responsáveis pela sintonização social.
Este sistema é ativado quando o sujeito observa um gesto finalizado e quando ele faz o mesmo gesto. Ou seja, perceber um comportamento em outra pessoa ativa automaticamente suas próprias representações do comportamento.
Já a Empatia é a capacidade do cérebro de reconhecer e replicar a emoção do outro em você. É ficar feliz com a felicidade de alguém, ou compartilhar a dor da tristeza alheia. E a empatia depende da ocorrência do “espelhamento” daqueles neurônios, ou seja, entender que o outro é parecido comigo, gente como eu.
Aqui surge um aspecto social delicado, porque se eu olho para alguém e não “espelho”, meu cérebro entende automaticamente que ele não é “gente”, é menos, sub-humano.
Desumanização ocorre quando nosso cérebro simplesmente conclui que um certo “grupo” de pessoas não são “humanas”, e os ignora automaticamente.
Um estudo feito em Princeton – autoria de Lasana T. Harris and Susan T. Fiske - mostrou que fotos de pessoas excluídas socialmente provocam uma reação de aversão, não solidariedade ou empatia.
Temos uma área cerebral chamada córtex pré-frontal medial, que entra em ação quando uma pessoa pensa sobre si, ou sobre outro ser humano. O que aconteceu no estudo é que, as pessoas ativavam seu córtex pré-frontal medial vendo uma série de fotos de muitos tipos de pessoas, exceto quando a foto mostrava extremos de pobreza, excluídos ou viciados.
Outra religião? não é gente como eu (é uma coisa) = pode bater
Outro sexo? não é gente como eu = pode desrespeitar;
Outra etnia? não é gente = pode torturar;
Não concordo com as opiniões dele / não é gente = pode ofender nos comentários...
E por aí vai...
Qual a breve lição? Nosso cérebro tem as duas ferramentas, para empatizar e para desumanizar, e o modo de se relacionar e de organizar a sociedade pode favorecer um ou outro.
Esses são apenas alguns exemplos de como os avanços no conhecimento do cérebro contribuem para uma qualidade de vida melhor para as pessoas e em sociedade.
Além disso, as neurociências deram esclarecimentos importantes para entender nosso lobo frontal, o chefe das funções executivas, ou seja, a definição de metas, planejamento e monitoramento do próprio desempenho. Graças a ele podemos pensar em uma estratégia, tomar decisões, agir de acordo com o ambiente social e controlar os impulsos.
No campo da medicina os avanços vão além das explicações, são vividos na prática desde o diagnóstico precoce de doenças psiquiátricas e neurológicas até aparelhos e dispositivos para resolver uma infinidade de problemas.
Citando doenças neurológicas, estimativas da OMS apontam que mais de 5% dos indivíduos com mais de 65 anos desenvolvem a doença de Alzheimer, uma degeneração progressiva de redes neuronais que causa a demência mais prevalente de hoje. Considerando que o Brasil passa por um processo de envelhecimento da população, a tendência é que essa projeção seja maior a cada ano, tanto para Alzheimer quanto para outros distúrbios do sistema nervoso.
Nanopartículas e terapia gênica são áreas promissoras na neurociência das próximas décadas. Já foram criados vários métodos para levar genes a estruturas cerebrais, utilizando vírus e nanomateriais. Um bom exemplo são as tentativas de terapia gênica para restaurar áreas cerebrais doentes utilizando genes responsáveis por guiar a produção de fatores neurotróficos – moléculas que que estimulam o crescimento, sobrevivência e diferenciação dos neurônios.
Testes mostraram que diversos materiais podem ser usados para virar nanopartículas, como, por exemplo, lipídeos, sílica e óxido de ferro. As partículas carregando moléculas são pequenas o suficiente para atravessar a barreira hematoencefálica e, assim, permitir o tratamento de muitos distúrbios. Outra possibilidade é usá-las como ferramentas de rastreamento, ajudando a localizar áreas de processos patológicos cerebrais.
Outra abordagem promete revolucionar a medicina é o que chamamos de “interface cérebro-máquina”.
Imagine uma pessoa que ficou tetraplégica, sem conseguir mover os membros. Ela é tratada cirurgicamente para implantar eletrodos no seu córtex motor, a área que controla os movimentos.
Depois da cirurgia, os sinais cerebrais captados pelos eletrodos são enviados a um computador, e algoritmos identificam padrões associados aos movimentos do braço e da mão.
Então, ela pode ser conectada à um braço robótico, pois quando ela pensar em mover o braço, os eletrodos enviam as oscilações cerebrais para o computador e ele as traduz em comandos de movimento executados pelo braço robótico.
Essa cena já foi pura ficção científica, mas hoje essa proeza já é possível. Uma interface cérebro-máquina é uma via de comunicação entre uma área do cérebro e um circuito eletrônico capaz de receber ou enviar informação para o tecido neural.
Robert Chmielewski viveu isso na realidade, ele ficou tetraplégico ainda adolescente, depois de um acidente surfando. Em 2019, Robert passou por uma cirurgia de 10 horas para implantação de seis eletrodos em seu cérebro. Hoje, ele já consegue usar os braços robóticos para tarefas como comer, por exemplo. Esse sucesso foi liderado e comemorado por pesquisadores da Johns Hopkins Medicine e do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins.
A história dessa tecnologia começou em meados do século XX, sendo que o primeiro caso de sucesso é o implante coclear, aparelhinho que já ajudou mais de 100 mil indivíduos portadores de surdez severa em todo o mundo.
Futuramente, a expectativa é também de sucesso para implantes de retina. Estimular células da retina com eletrodos que enviariam uma “imagem” codificada em sinais elétricos.
Mas a interação do nosso cérebro com a máquina não é restrita só aos dispositivos robóticos e eletrodos, estamos assistindo o desenvolvimento super rápido das inteligências artificiais também.
A era dos assistentes pessoais, redes neurais artificiais e máquinas que aprendem.
Sistemas computacionais capazes de aprender a partir da interpretação de dados são mais comuns do que você pode pensar. Eles estão nos novos tradutores automáticos, sistemas de reconhecimento facial, sistemas de recomendação – como na netflix e na amazon – que parecem que te conhecem há anos!
De forma bem direta, são tecnologias desenvolvidas com apoio na neurociência que cada vez mais são capazes de automatizar tarefas complexas que exigem raciocínio e atenção – como dirigir um carro e conversar com alguém ao telefone.
Nesse breve bate papo, refletimos sobre algumas esferas de transformação alimentadas pelas neurociências. Do desafio de entender o cérebro em sua plenitude até recursos terapêuticos e tecnologias potentes. Fica aquela sensação de, qual será o limite? Até onde chegaremos?
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Resumo de tópicos:
Na educação, o entendimento de como o cérebro jovem e o cérebro adulto aprendem é o grande norte das discussões, apimentadas também pela evolução dos dispositivos eletrônicos.
Tudo que vivemos, todos os estímulos que experienciamos, mudam nosso cérebro.
A receita para manter e aproveitar ao máximo sua plasticidade é o empenho cognitivo através de estímulos variados associado a atividade física e alimentação de qualidade. Essa combinação favorece as sinapses em áreas como o hipocampo, facilitando o desempenho cognitivo e a memória.
Nosso cérebro tem as duas ferramentas, para empatizar e para desumanizar, e o modo de se relacionar e de organizar a sociedade pode favorecer um ou outro.
Nanopartículas e terapia gênica são áreas promissoras na neurociência das próximas décadas. Já foram criados vários métodos para levar genes a estruturas cerebrais, utilizando vírus e nanomateriais.
Uma interface cérebro-máquina é uma via de comunicação entre uma área do cérebro e um circuito eletrônico capaz de receber ou enviar informação para o tecido neural.